Guy Delisle conta-nos as suas vivências laborais (e pessoais) através de Banda Desenhada:
Começa a relatar as suas viagens em Shenzhen, e assegura que o fez por simples aborrecimento. Esperava que isso se traduzisse num hábito que acabou por o converter num autor famoso?
Não, porque tenho péssima memória. E tinha estado na China antes, em 1998 e depois em Shenzhen em 2000. Tinha que tomar notas para não me esquecer de tudo o que vivia. Mais tarde, quando chegava a casa e revia as minhas notas, pensava que poderia fazer uma pequena Banda Desenhada. O que começou como uma pequena história foi convertendo-se em um capítulo, e logo depois outro, e por aí adiante. No final deu um livro completo, apesar de um pouco “underground”, porque há 15 anos em França, que nenhuma editora publicava uma Banda Desenhada pequena e a preto e branco, sobre um homem que viaja pela China. Assim, a única forma de conseguir publicar foi graças à editora L´Association, que publicou cerca de 200 cópias.
O humor está muito presente nas suas obras. Será possível sobreviver em países como os que visitou, sem um olhar irónico sobre a realidade?
Foi o que descobri quando falei com os palestinos, que têm um grande sentido de humor. São muito irónicos, porque a situação em que vivem é na realidade muito dura. De alguma forma, tens que rir da tua própria situação para suavizar os acontecimentos. É bom para a saúde. O meu caso é diferente, emprego o humor nos meus livros porque é a única forma que tenho de contar histórias.
Escreveu Pyongyang enquanto passava um ano na Etiópia com a sua mulher, porque não lançou também uma Banda Desenhada que conta a sua experiência nesse país?
Quando estava na Etiopia eu e a minha mulher ainda não tínhamos filhos, dedicávamos muito tempo ao trabalho. Estava bastante concentrado no livro e passava a maior parte do tempo a trabalhar nele. Nem nunca me ocorreu fazer outro livro sobre esse país, porque basicamente estava muito ocupado com Pyongyang. Vivi algumas experiências interessantes para um livro, mas nem sequer tomei notas porque não tinha essa ideia na cabeça. Agora arrependo-me, porque a Etiópia é um grande país e as pessoas são fantásticas. Adoraria transformá-lo num livro.
Talvez no futuro? Já pensei várias vezes em voltar e tentar recordar tudo o que lá vivi. Mas, nunca iria fazer quatro livros sobre viagens, não vou escrever um quinto. Tenho outros planos e livros em mente.
Os seus livros de viagens surgem do seu trabalho como animador ou a acompanhar a sua mulher em trabalho. Alguma vez viajou para um determinado país com propósito de escrever um livro?
Não, porque posso estar um mês e meio no Vietname, passear com os locais e voltar para casa, ler as notas… tenho um passado genial com os seus fantásticos habitantes, mas isso não faz um livro. Seria muito difícil para mim decidir “Vou a Dublin ou Tóquio para escrever um livro”, porque com as experiências que vivi, tenho a sensação que esse seria o ponto de vista de um turista e não quero fazer algo assim. Não posso planear antecipadamente. Quando acompanho a minha mulher nas suas viagens penso: “Vamos ver se surge algo interessante, que sirva para escrever um livro no regresso”.
Então, prefere ir e encontrar-se com as histórias e situações. Sim, talvez um ano inteiro seja demasiado tempo, como em Jerusalém, mas também duas semanas seriam pouco. Quando levava seis meses, comecei a pensar que poderia escrever várias histórias. Mais para o final das férias, pensava que não poderia fazer o livro, que seria muito complicado, porque tinha demasiado material. Ao voltar a casa, deixei o trabalho por uns meses e depois iniciei a leitura das notas. Comecei pela primeira página… e finalmente consegui acabar o livro.
Que cidade ou país gostaria de viajar para escrever um livro? Gosto muito da Ásia e já visitei alguns países, mas nunca fui ao Japão. Adoraria conhecer esse país, mas de facto já existem imensos livros magníficos sobre o Japão, assim duvido que possa contribuir com algo mais. O Japão é uma viagem que adoraria fazer!
Mas é uma cultura tão diferente e peculiar que tenho a certeza que seria capaz de contar algo novo. Existe um livro de um Japonês que vive em Paris que narra o choque cultural sobre o seu ponto de vista. Digamos que é um modo inverso do meu, é bastante divertido.
Como vai o seu próximo livro, sobre um prisioneiro na Chechénia? É sobre um homem que conheci porque trabalhava com a minha mulher. A sua história pareceu-me fascinante, foi sequestrado durante três meses. Fizemos-nos amigos, temos falado muito e até tenho gravado o seu testemunho. Estou tentado a transformá-lo numa Banda Desenhada. Existem muitas pessoas a colaborarem com a ONG com grandes histórias de vida que deveriam ser contadas.
Já trabalhou em países Asiáticos, onde o Ocidente subcontrata a animação terceirizada para reduzir os custos, como a China ou Coreia do Norte?
Antigamente trabalhava apenas em estúdios franceses ou alemães com umas cinquenta pessoas, mas infelizmente estes já não existem. É uma pena porque agora existe mais educação na animação que animadores. Espero que alguma vez no meu trabalho volte a França, agora está quase apagado do mapa por uma geração. Talvez os jovens a recuperem.
Também tem várias Bandas Desenhadas mais ligeiras, sobre a relação com os seus filhos. Exagera muito a realidade para chegar a essas situações tão engraçadas? As histórias baseiam-se na minha realidade. Às vezes, sucedem-me coisas engraçadas com os meus filhos e exagero-as um pouco. Mas é verdade que me esqueci durante três dias seguidos que tinha caído um dente a um dos meus filhos. Eu adoro imaginar esse tipo de coisas e como seria a reação do leitor. Ao tratar-se de humor e da minha própria família, e não de um país, dá-me gozo inventar situações para que sejam mais divertidas.